segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

andaduras do cavalo

As marchas são os andamentos intermediários do cavalo marchador, executados em quatro tempos, e que substitui o trote em algumas famílias do Equus caballus. Elas representam um dos temas mais controvertidos do ‘mundo do cavalo’.

Até a presente data, a maioria dos livros que trata dos andamentos ou andaduras do cavalo descreve a marcha como sendo “artificial”, isto é, ensinada pelo homem. Entretanto, os modernos estudos da neurofisiologia do exercício nos ensinam que todos os movimentos de uma espécie animal foram incorporados através de mutações milenares e, por seleção natural, passaram a fazer parte do ‘elenco’ de movimentos daquele tipo de animal. Portanto, na equitação, não é possível se ‘ensinar’ novos movimentos ao cavalo, mas apenas aprender a utilizar os movimentos naturais que o animal possui (Rooney 1974).

O mais antigo vestígio de cavalos marchadores foi descoberto na África pelo paleontólogo americano Dr. E. Renders. Os rastros fossilizados encontrados na lava vulcânica de Laetoli, na Tanzânia, tem cerca de 3,5 milhões de anos e pertencem ao Hipparion, uma espécie de eqüida tridáctilo, um dos ancestrais do moderno Equus caballus. Até a publicação dos estudos do Dr. Renders a ciência não sabia se as marchas eram de origem genética ou se eram andamentos artificiais, ensinados pelo homem (MacFadden 1992).

No passado, com a descoberta de animais marchadores na Espanha alguns estudiosos propuseram a teoria de que, em sua origem, o cavalo teria sido marchador e que através da sua evolução tivesse se tornado trotador. Entretanto, isto contraria as leis da evolução propostas por Darwin e outros cientistas que afirmam que a evolução biológica começa com formas primárias e através de mutações e da seleção natural transformam-se em espécies mais complexas. A marcha, executada em quatro tempos é, do ponto de vista da biomecânica, uma dinâmica mais complexa do que o trote, executado em apenas dois tempos. Portanto é mais razoável se supor que a marcha seja uma evolução sobre o trote do que o contrário.

Eu, particularmente, acredito que algumas famílias dos eqüidas, animais inicialmente trotadores, desenvolveram a capacidade de se movimentar com a segurança do passo e com a velocidade do trote ao se deslocarem por terrenos vulcânicos e lamacentos das eras eocena e miocena. As marchas, por serem andamentos executadas em quatro tempos, exigem complexidade neurofisiológica superior aos andamentos executados em dois tempos – o trote e a andadura.

O resultado prático das marchas na dinâmica do cavalo é que nenhum outro tipo de animal avança com mais firmeza sobre qualquer terreno – seja ele duro ou escorregadio – com a segurança que este andamento quaternário oferece aos cavalos marchadores. No seu deslocamento, a cada passada, este animal terá no mínimo um pé em contato com o solo, evitando assim os momentos de suspensão total típicos do trote. A marcha poderá atingir a velocidade de até 18km/hora sem perder a segurança do passo. Este fenômeno biomecânico deu aos cavalos marchadores uma vantagem evolutiva sobre os trotadores nas regiões supracitadas. As marchas são, sem dúvida, uma evolução sobre o trote e que ajudaram a dar longevidade filogenética ao Equus caballus. O próprio Dr. Renders concluiu que a marcha no cavalo moderno poderia substituir, com vantagem, o trote (Renders – The gait of Hipparion from fossil footprints in Laetoli, Tanzânia, publicado na revista Nature).

Entre os cavalos marchadores existe um grande número de tipos de andamentos marchados e que na antigüidade foram amplamente explorados para a montaria. A habilidade neurofisiológica que dava grande estabilidade na locomoção do cavalo marchador dava também grande comodidade ao seu cavaleiro, uma vantagem no relacionamento simbiótico homem-cavalo. Sabemos que as cavalarias dos hunos, turcos e mongóis, as melhores do mundo, eram formadas essencialmente por cavalos marchadores. Até hoje os animais das estepes da Mongólia, os resíduos das cavalarias conquistadoras de Genghis Khan e seus sucessores, são na sua maioria animais de andamentos marchados. Hoje, com melhor compreensão da biomecânica dos eqüinos podemos dividir os andamentos marchados em dois grupos principais: os andamentos conhecidos no Brasil como marcha picada e marcha batida. As demais modalidades são provavelmente variantes destes dois tipos, sendo algumas mais lateralizadas, à semelhança da picada, e outras mais diagonais, à semelhança da batida. Outras são apenas o aumento da velocidade do andamento original (nos Estados Unidos chamado de ‘rack’ e no Brasil conhecido por ‘guinilha’). Para o cavaleiro, a marcha picada e a marcha batida se apresentam muito úteis, mas com propostas diferentes. A marcha picada é mais ‘macia’ e desestabiliza menos o cavaleiro inexperiente ou débil. Este andamento não deve, entretanto, ser utilizado para a equitação esportiva – não por uma deficiência do cavalo, mas do cavaleiro: o sistema nervoso humano não é capaz de se coordenar neurofisiologicamente com a velocidade do seu ritmo quaternário de toques eqüidistantes – 1, 2, 3, 4. O homem, por ser bípede, só tem facilidade de coordenação em dois tempos e a sua coordenação com a movimentação do cavalo é essencial nos esportes. O trote é em dois tempos e a marcha batida, apesar de ser em quatro tempos, tem os momentos das trocas de apoio bem perceptíveis. Por isso o uso da marcha picada e suas variantes são indicados apenas para as cavalgadas, passeios e romarias, que não exigem do usuário uma equitação de precisão.

A marcha batida poderá se revelar o melhor andamento para a equitação clássica. Este deslocamento, também em quatro tempos, mas com os toques dos cascos soando de dois a dois — 1,2 /3,4 – é ótimo para a equitação esportiva. A marcha batida permite a total união neurofisiológica entre o cavalo e o cavaleiro dispensando o senta-levanta do trote. A marcha batida dá a posição correta ao cavaleiro na sela e permite ao conjunto executar todas as transições com mais comodidade para o cavaleiro e maior harmonia do conjunto. Com a nova compreensão da neurofisiologia da equitação não podemos deixar de vislumbrar a volta do cavalo de marcha batida para os esportes modernos como sendo a maior contribuição para a equitação clássica desde que Caprilli, há cem anos, inventou o “assento adiantado”. Acredito que as deficiências estruturais que a média dos cavalos de marcha ainda carrega por falta de uma seleção zootécnica mais rigorosa para a equitação avançada, poderão ser superadas, de modo endogâmico, através do cruzamento e seleção animais puros da raça que possuem as qualidades desejadas. Com os recursos da moderna zootecnia eqüina, em algumas gerações poderá se chegar ao cavalo de marcha batida com o padrão mundial de potência. A atual tropa de 300 mil cavalos Mangalarga Marchador garante a existência, dentro da população, de animais evoluídos para fazerem esse “upgrading” genético da raça.

No século 21 o cavalo de marcha batida, poderá se revelar a Ferrari dos cavalos modernos. E o Brasil, o maior criador de cavalos de marcha do mundo, poderá se posicionar como o melhor produtor internacional deste tipo de cavalo.